#EP39: “A raiz do problema está num só lugar: o sistema deseducativo”
No 39º episódio do Podcast Isto Não é Pera Doce recebemos como convidados o professor José Pacheco e a psicopedagoga Ludmila Duarte Pereira.
No 39º episódio do Podcast Isto Não é Pera Doce recebemos como convidados o professor José Pacheco e a psicopedagoga Ludmila Duarte Pereira. Para quem esteja, pelo menos, atento à área da Educação, o nome José Pacheco é-lhe com certeza familiar. Designer educacional, é uma referência incontornável, com a coordenação do projeto “Fazer a Ponte” – de 1976 a 2004 -, que acabou por ter impacto além-fronteiras. Ludmila Duarte Pereira, psicopedagoga, palestrante, dá consultoria pedagógica educacional, é educadora brasileira e faz formação de professores em escolas públicas e privadas, seguindo a metodologia do professor José Pacheco.
Ambos acreditam que as crianças e jovens devem ser protagonistas no processo de aprendizagem, perseguindo o sonho em explorar novas possibilidades para a Educação. Que fragilidades existem no sistema de ensino atual? Qual o modelo defendido pelos nossos convidados? Assista à conversa surpreendente, na íntegra:
Um sistema deseducativo
Pensar um sistema de ensino implica pensar no processo de aprendizagem, um percurso que é desenhado para promover o sucesso do aluno, por professores, educadores, diretores e coordenadores pedagógicos, iniciado desde os primeiros anos de idade, com o pré-escolar. Será, por isso, um percurso contínuo que irá preparar aquela criança, idealmente, para ingressar no Ensino Superior. Porém, uma das questões que mais se tem colocado é se, efetivamente, a escola está a oferecer um projeto educativo certo, considerando o avanço tecnológico.
Para José Pacheco, a resposta é apenas uma. O sistema é deseducativo. Recordando a sua experiência enquanto professor, José Pacheco, recorda as partilhas dos colegas com quem trabalhou, que já espelhavam o que considera ser problemático no sistema de ensino atual: uma bola de neve que vem sendo construída desde os primeiros passos de aprendizagem das crianças.
Quando eu estava na universidade ouvia os meus colegas, professores, dizer que eles vinham mal preparados, o secundário não fazia nada. E nós perguntávamos porquê. “O secundário não funciona”. Quando eu trabalhei no secundário, eu ouvia os meus colegas dizer “o problema é o ensino básico, eles vêm mal preparados.” Quando eu estava nas salas de aula do ensino básico, eu ouvia-os dizer “eles vêm é de casa muito mal-educados, muito mal preparados.” […] A raiz do problema está só num lugar: o sistema deseducativo. Eu não lhe chamo sistema educativo, é deseducativo.
Caraterísticas como hierarquia, autoritarismo, corrupção moral e falta de ética são apontadas por José Pacheco ao sistema de ensino atual. E, explica porquê, através de um exemplo prático:
Quando um professor aplica um teste, - que não avalia absolutamente nada em termos cognitivos, avalia é a capacidade de retenção da informação na memória de curto prazo, vomitar para esquecer, que não aprendeu, um teste não diz o que ele aprendeu – um professor que esteja numa sala de aula, num dia de teste, ele está ali presumindo que aqueles alunos são potencialmente desonestos. Ele está ali para fiscalizar, para impedir que copiem. Ou seja, está a transmitir valores, porque um professor não ensina aquilo que diz, transmite aquilo que é. Transmitir valores de deslealdade, mentira, falsidade, corrupção. É isto que acontece diariamente nas salas de aula deste país. Má educação, falsidade ideológica, tudo mais.
Na perspetiva de José Pacheco, um teste nada avalia. Segundo a lei, diz o professor, a avaliação tem que ser formativa, contínua e sistemática. Um teste é o oposto, contribuindo para um sistema fora da lei, afirma.
Um teste não é formativo. Não é contínuo, é periódico. Não é sistemático, incide numa parcela de conhecimento de uma disciplina. Ou seja, também na avaliação, as escolas e o sistema estão fora da lei. Eu vou repetir: o sistema está fora da lei.
«Temos de repensar no estamos a chamar de avaliação»
Quando falamos em avaliação pensamos, inevitavelmente, nos testes de finais de período, ou nos exames de acesso ao Ensino Superior, por exemplo. Porém, idealmente, a avaliação acontece durante todo o percurso escolar do aluno, desde a primeira aula até à última, correspondente àquele ano letivo. Mas, será que acontece mesmo assim? Para Ludmila Pereira, é preciso repensarmos no processo de avaliação, porque o que acontece neste momento são avaliações objetivas, que promovem uma competição entre os estudantes.
Os processos avaliativos são extremamente objetivos, porque são mais fáceis de corrigir e a partir de um modelo de competição e não realmente de avaliação. Eles não avaliam, eles promovem uma competição, quem pontua mais. Isso não é um processo avaliador que irá trazer uma formação educacional do próprio educando. […] Quando coloca um processo educacional em livre disputa, eu já sei que o colega que está ao meu lado, à minha frente ou atrás de mim é meu inimigo. Eu preciso de eliminar as pessoas para ter uma posição e a própria escala da educação pensar que o ensino superior é para poucos, então isso também é um processo discriminatório a nível social que é muito grave.
Mas, não se trata apenas de aplicar testes, os próprios termos que utilizamos quando nos referimos a Educação, promovem esta necessidade de mudança, explica Ludmila.
Inclusive, os próprios termos que a educação hoje usa são termos alienantes do processo de educar. Quando eu falo aluno, eu estou a dizer aquele que não tem luz, então eu já coloco essa pessoa num lugar de submissão daquele que vai educar. Então, tudo isso são processos que precisamos de pensar. O nosso vocabulário impõe muitas realidades. Temos de repensar no que estamos a chamar de avaliação.
A avaliação não pode apenas espelhar a capacidade de um aluno reter informação na memória a curto prazo, são precisas evidências que demonstrem que as aprendizagens foram consolidadas, que ao conhecimento transmitido lhe foi transmitido um significado.
É construirmos outros instrumentos, que não é só a prova em si, um teste. Eles são válidos e necessários, mas eles não são únicos e eles não são qualitativos. Eles são espelhos de um único momento. É uma fotografia. Quando você fala em avaliação, vai olhar o percurso dessa criança, desse estudante, ou desse aprendente – se nós trouxermos uma linguagem mais adequada para os dias de hoje - porque somos todos aprendentes -, a partir desse momento, em que temos um telemóvel na mão e temos todas as informações que nós quisermos, não precisamos de ninguém para dizer, basta que tenhamos uma pergunta e vamos encontrar uma resposta. Mas, precisamos da mediação com o outro para dar sentido a essa resposta. Então, falar em avaliar é construir evidências que nos mostrem que habilidades foram consolidadas e competências. Isso só tem significado quando eu encontro significação naquilo que eu estou a aprender.
Nas palavras de Ludmila, a escola ainda está presa ao modelo de colocar as crianças do século XXI – que têm uma enorme capacidade linguística e uma enorme inteligência tecnológica – sentadas atrás umas das outras. Um modelo que não é viável e que precisa de ser reconstruído.
Não é viável que haja relação neste processo de conhecer, nem com o próprio professor que se coloca à frente e não numa relação de horizontalidade com essa infância, porque a relação agora é de horizontalidade. Eu não preciso mais do professor enciclopédia. Eu não preciso mais de consumir o currículo, eu preciso de construir o currículo.
«Eles não vão chegar à escola. Eles estão na escola»
Mas, então, como seria este novo currículo? Como é que funcionaria? Desmontamos o conceito de aula, a hora, o tempo letivo, aqueles planos curriculares para cumprir. Os alunos vão chegar à escola e o que é que vão encontrar? O que é que os espera?
Escolas são pessoas. Não são prédios. Portanto, eles não vão chegar à escola. Eles estão na escola. Escolas são pessoas - este é o axioma básico da nova construção social -, que podem estar dentro de prédios. E o que é que as pessoas são? Os seus valores.
Na perspetiva de José Pacheco, para uma nova construção social, são precisas pessoas com valores de uma nova visão do mundo, que não aquela que o sistema impõe. Pois, nas suas palavras, o sistema impõe um modelo educacional caduco, obsoleto e sem fundamento. A partir daí, pensamos a escola numa ligação intensa à formação inicial na universidade e ao poder público, que estabeleça diálogo.
Quando realmente pensamos assim, numa nova visão do mundo e de sociedade, nós pensamos em juntar a família, a sociedade e a escola – o Estado através da escola. Pensamos em juntar a escola com a saúde pública ambiente, arte e cultura. Então, escolas são pessoas, pessoas são os seus valores – num quadro axiológico -, onde é que estão esses valores? Nos projetos das escolas. Ou seja, em princípios de ação. Então, sendo assim, nós teremos de juntar o paradigma da instrução com o paradigma da aprendizagem, do sujeito da aprendizagem, na dignidade da escolha da participação e aprendizagem significativa integradora. Importa perceber que nós teremos de centrar, não no professor, nem no aluno, mas na qualidade da relação. Teremos de humanizar.
No novo sistema de educação, defendido por José Pacheco e Ludmila, ninguém está sozinho, porque um professor sozinho na sala de aula é um escândalo epistemológico, afirma José. Então, o que pode ser feito para os professores mudarem as suas práticas? Ludmila explica:
Eu preciso de pensar sobre o que eu faço. Eu não posso receber aquilo a achar que a academia é suprema no que me traz enquanto conhecimento ou informação. Há muita confusão entre informação e conhecimento. Quando eu recebo informação ela não é conhecimento, enquanto eu não lhe dou sentido. Enquanto ela não traz significação e, aí, estamos a falar de atitudes, de sentimentos, de uso.
José Pacheco acrescenta:
Temos de ir ao encontro desses professores que estão, caladinhos -, porque é difícil realmente mudar – e cuidar deles. Juntar os pais e os professores. Conversar com os diretores. Conversar com a universidade. Conversar com o poder público. Que este governo aceite falar de educação no parlamento, porque o que se tem falado é de outra coisa, dando-lhe o nome de educação
No novo sistema educativo:
A avaliação tem de estar alinhada com a aprendizagem. A avaliação é indissociável de todo o processo de aprendizagem. A avaliação não é classificação. Não é forçoso que se compare seres humanos em escalas ordinais. A avaliação está ligada a um referencial teórico, moral, etc. Aquilo que nós nos propomos fazer é uma formação diferente, que passe por aquilo que a Escola da Ponte conseguiu fazer e vá além.
Porque:
Um povo não adormece no regime totalitário num dia, e acorda democrático no dia seguinte. Que deveríamos cuidar de democratizar a educação e de transformar o sistema de ensino, porque senão a escola continua a ser um berço de tentações totalitárias e de pequenas ditaduras.
Assista ao episódio, na íntegra, no YouTube, Spotify, iTunes ou Google Podcasts.
Adriana Ribeiro
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